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O erro de Kant

Quando olhamos para o que passa na sociedade europeia e ocidental, podemos constatar o erro de Kant. Acredito que Kant tenha sido bem-intencionado e que se terá guiado por boa-fé; não ponho em causa, de maneira nenhuma, os bons propósitos de Kant. Porém, enganou-se. Quando Kant defendeu a sua doutrina da autonomia, julgou ser possível ao Homem alterar a sua natureza intrínseca.

Kant não poderia prever que a sua doutrina da autonomia poderia um dia permitir que, em nome dessa mesma doutrina, a autonomia do Homem fosse colocada em causa por uma elite auto-proclamada. Assistimos aqui a um processo de retro-acção ideológica, em que um sistema de ideias, por acção da entropia temporal, desemboca exactamente no oposto da sua intencionalidade. Resumindo, em linguagem corrente: “De boas intenções está o inferno cheio”.


O Brasil está prestes a aprovar uma lei que criminaliza a homofobia, entendendo-se por homofobia qualquer menção ou reparo críticos ao comportamento homossexual. Passa a ser proibido por lei criticar o comportamento gay, sendo que o prevaricador poderá ser preso por delito de opinião.


O que se passa é que a doutrina iluminista da autonomia, de Kant, serve hoje exactamente um propósito contrário ao idealizado por Kant.

A traço grosso, a doutrina da autonomia, de Kant, consiste no seguinte: sempre que nos confrontemos com uma ordem de uma autoridade, somos sempre nós que, por nossa própria responsabilidade, decidimos se essa ordem é moral ou imoral. Uma autoridade pode ter poderes para fazer cumprir as suas ordens; porém, se nos for fisicamente possível escolher o nosso procedimento, neste caso a responsabilidade é nossa — porque nos cabe a decisão: obedecer à ordem ou não obedecer, reconhecer a autoridade ou recusá-la.

Kant não responsabiliza o Homem, porque se o fizesse teria que dizer também que a opinião que recusa a autoridade terá sempre que ser fundamentada racionalmente. Ao dar a liberdade de recusar uma autoridade, sem que essa recusa seja necessariamente fundamentada pela razão, Kant abriu a caixa de pandora para o idealismo romântico alemão que desembocou na tragédia humana do século XX.

Aqueles que dizem que Kant não foi o percursor do romantismo idealista — de Fichte ou de Hegel, e que descambou em Nietzsche — estão errados. Ele foi o percursor do idealismo alemão, mesmo que eventualmente não tenha sido essa a sua intenção (de boas intenções está o inferno cheio), e por simples retro-acção do seu ecossistema ideológico.

À primeira vista, dá a sensação de que Kant, se vivesse hoje, poderia estar contra a lei brasileira da homofobia, a julgar pela sua doutrina da autonomia. Porém, quando Kant mina o respeito por qualquer tipo de autoridade — incluindo o respeito pela religião —, substitui o respeito por uma autoridade pela submissão a um qualquer totalitarismo. A rebelião de Kant contra a autoritas tradicional desembocou na legitimação totalitária do século XX.

Uma autoridade, por definição, não é totalitária. Respeita-se uma autoridade; e submete-se a um totalitarismo. Uma autoridade não tem necessariamente que ser tirana. Por isso é que os ingleses, cujo modelo sócio-cultural foi a inspiração de Kant, foram os mais ferozes críticos da doutrina da autonomia de Kant (infelizmente, até os ingleses actuais assimilaram culturalmente as ideias de Kant), porque o efeito prático da doutrina da autonomia era então, como hoje, a revolução pautada pela irracionalidade.

Quando colocamos em causa uma autoridade sem que essa recusa seja racionalmente fundamentada, estamos em presença de uma revolução. Uma revolução é, por definição, irracional. Porém, não podemos admitir que uma autoridade seja colocada em causa porque nos dá na real gana : antes temos que fundamentar racionalmente essa recusa.


A lei brasileira da homofobia é imposta em nome da doutrina da autonomia de Kant. A lei brasileira da homofobia pretende recusar uma autoritas tradicional impondo, em seu lugar, a irracionalidade de um princípio totalitário. Provavelmente, se Kant soubesse das consequências práticas da sua doutrina da autonomia, teria rasgado o seu rascunho.

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A maçonaria europeia e as “teorias de conspiração”

Este artigo de Olavo de Carvalho chama a nossa atenção para a procura da verdade, o que significa a tentativa da eliminação do erro. Eu estou genericamente de acordo com o texto, embora esteja em desacordo com um pequeno detalhe que deixarei para o fim deste postal.
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